Conto autoral “102”

Ter que se mudar no meio da noite não é uma boa ideia. Mas de ideias ruins, eu estou cheio. Não faz nem alguns minutos que cheguei, e começo a escutar algumas batidas na porta 103, meu vizinho do lado direito. Ou vizinha. Ainda não tive a chance de conhecer os incríveis moradores que como eu, não tiveram escolha a não ser vir parar aqui. Por que será que tem gente incomodando outra gente no meio da noite? Espero que isso não aconteça comigo.

 

Em poucos segundos, ouço de novo batidas na porta 103. E nada da porta abrir. Parece que a pessoa desistiu. Vou direto para a cama, e penso no longo dia de amanhã, e lembro que eu não tenho nada para o dia de amanhã.

 

Quando acordo, consigo dar uma boa olhada no lugar. Meu novo apartamento é um cubículo, para ser gentil. Uma sala quarto banheiro cozinha amontoados, pisos e paredes gastas com cor de coisa antiga e um cheiro… Peculiar. Ótimo. Do meu tamanho. Passo a manhã toda organizando minhas poucas três caixas de coisas. Acho que ouvi de novo algumas batidas na porta do lado. Nada aconteceu. De novo. Almoço o pouco que sobrou do final de semana. Agora ouço batidas na minha porta. Não estou esperando ninguém. Abro a porta e dou de cara com uma senhora que parece ter saído de um desenho animado.

 

– Oi meu querido, você que é o novo morador do 102?

 

Penso em responder o quão óbvia é essa pergunta, já que essa senhora está batendo na porta 102, às 14h de uma segunda-feira, e eu sou aquele que a atende.

 

– Oi senhora, sim sou eu mesmo. Meu nome é Ricardo. A senhora precisa de alguma coisa? – Digo, agradecendo às minhas boas maneiras que não deixam transparecer nada além disso.

 

– Ah, mas que gentileza a sua. – Ela diz entusiasmada. – Bem que a Benta me falou que você parecia um doce, mas falou que era mais jovem. Quantos anos você tá meu querido? Quarenta?

 

– Trinta e dois. – Respondo com um sorriso torto no rosto, é claro.

 

Eu já sabia que teria que enfrentar a falta de censo de um velho ou outro. E, afinal, quem é Benta? Será a pessoa que estava batendo na porta do lado ontem?

 

– Então, sabe que a Benta às vezes gosta de aumentar as coisas. – Ela dá uma risadinha. – Sabe que outro dia eu a peguei fumando na porta do prédio? Bom, eu que não ia falar nada, não me intrometo na vida dos outros certo, mas eu nunca teria coragem de fumar com essa idade. Minha neta mesmo sempre me alerta sobre os perigos médicos da idade. Você quer ver uma foto dela? Sempre a trago comigo e…

 

– Que tal depois dona…? Desculpe, acredito que eu ainda não tenha perguntado o seu nome.

 

– Oh, claro, claro, desculpe. Eu sou a Cecília, mas todos por aqui me chamam de Ceci. Eu vim te dar as boas-vindas. Como é um prédio pequeno e antigo, os moradores normalmente são todos conhecidos e, às vezes, tão antigos quanto o prédio – ela dá outra risadinha, e nesse momento, percebo que ela carrega algumas coisas dentro de uma sacola de mercado, aquelas grandes com estampas de gato, combinando com o seu vestido cor de rosa.

 

– Eu trouxe um agrado pra você. – Ela diz tirando um tupperware com algo que parece ser uma quantidade enorme de pequenas coxinhas dentro, e me entrega o pote.

 

Mas é claro.

 

– Ah, sim – finjo uma risada – muito obrigado pelas boas-vindas. Mas não precisa de nad…

 

– Deixe de ser bobo. Eu sou a melhor cozinheira daqui. Pegue, pegue.

 

– Certo, muito agradecido, senhora. Até mais tarde…

 

Mas, no momento em que acho que vou conseguir, de fato, fechar a porta e me livrar daquele momento constrangedor idosa falando dos outros e contando da sua vida na porta da minha casa quando eu não estou nem um pouco a fim de saber, ainda por cima me oferecendo comida, ela se encosta na porta e recomeça:

 

– Ah, querido, só mais uma coisa. – Ela começa a tirar outro pote de dentro da sacola de gatos. – Eu precisava de uma ajuda, já que você é tão gentil. Não estou conseguindo achar o meu remédio, será que você poderia achar pra mim?

 

Vejo que não tenho como recusar ao pedido. Eu posso até ser um medíocre, mas não vou dizer não a isto. Vai que eu recuso e, horas mais tarde, tem uma ambulância na porta do prédio. Mexo no pote de remédios. Vários comprimidos jogados, fora das caixas e vencidos. Percebo que não tenho escolha.

 

– Entra Dona Cecília.

 

– Obrigada, meu bem. Pode me chamar de Ceci.

 

Jogamos tudo em cima da minha bancada. Alguns comprimidos caem no chão. Quando me abaixo para pegá-los, algo preto e peludo entra pelo meio-fio da porta – é claro que a Dona Ceci não fechou a porta direito – e vai direto para a minha mão.

 

– Mas que por… – Consigo me controlar no final da frase.

 

– Olha só, se não é o Pongo. Pssst, pssst.

 

Um gato. Na minha casa. Um gato. Preto. Dona Ceci. Na minha casa. Um gato. De onde ele veio? Não gosto de gatos. Não sou fã de idosos. Dona Ceci chama o gato e faz carinho nele. Meu Deus, aonde eu vim parar?

 

– De onde ele veio? – Pergunto.

 

– O Pongo é um dos gatos que mora por aqui. Ele não tem dono, nós deixamos comida e água pra ele e pra outros gatinhos que rondam o prédio. Construímos uma casinha pra eles ali na rua, e às vezes eles ficam pelos apartamentos.

 

– Sei. Vamos gatinho, saindo, saindo. – Eu começo a empurrar o gato com o pé até a porta.

 

– Lembre-se Dona Benta, todos os dias, às 6h e às 18h, um do verdinho e um do laranjinha. Na quarta, eu passo na sua casa de novo para irmos ao mercado, tá bom?

 

Dá pra ouvir tudo há 2 metros de distância nesse edifício. Paredes finas. Mais um detalhe na lista dos problemas do prédio.

 

Quando abro a porta para tirar o gato, vejo uma mulher. Jovem. Neste prédio. Deve ser a dona da voz. Estou levemente aliviado. Ela passa apressada pela minha porta, mas para e volta. Deve ser por minha causa, ela vêm me dar boas-vindas também.

 

– Dona Ceci, o que a senhora está fazendo aqui? Errou o apartamento?

 

– Ó, Lari querida, não não bem. Eu vim aqui dar as boas-vindas ao novo morador do 102.

 

– Entendi. Seja bem-vindo, eu sou a Lari do 201.

 

– Prazer, Ricardo.

 

– A senhora viu o Seu Tino hoje, Ceci?

 

– Ainda não bem.

 

– Certo, vou bater lá. Tchau pessoal.

 

– Tchau. – Respondo.

 

Tchau querida. – Responde a Dona Ceci.

 

Fecho a porta atrás de mim e me encaminho de novo aos remédios. Ainda não consegui achar o que a Dona Ceci procura de tanto ser interrompido nesse lugar.

 

– A Lari é uma graça, né, Seu Ricardo? Ela cuida de todo mundo aqui, já que quase todos nós precisamos de uma ajuda vez ou outra. Foi ela também que escolheu as cores da reforma, já fazia alguns anos que não arrumávamos nada por aqui…

 

Penso no quanto ainda falta fazer, mas decido não comentar.

 

– Sei. Que bom, Dona Ceci. É esse remédio aqui que a senhora queria? – Pergunto, finalmente encontrando o tal.

 

– Olha, achou. Que bom. Muito obrigada querido.

 

Batidas de novo. Mas será possível! O que tem esse vizinho ou vizinha, que não atende a merda da porta?

 

– Seu Tinoooooo, ô Seu Tino. Tá em casa? – Conseguimos ouvir alguém chamando do lado de fora, claro.

 

Essa é a voz da mulher que acabou de passar aqui? Então esse Seu Tino é o meu querido vizinho. Pelo jeito, não vou dormir muito nesse prédio.

 

– Esse tal de Tino parece ser alguém disputado. – Digo, tentando arranjar informações sobre o vizinho.

 

– Ah, não liga não. Ele é um chato, o único que não vale a pena conhecer aqui.

 

Estranho. Alguém sobre quem a Dona Ceci não quer falar? Mas deixo quieto. Recolho os remédios, guardo na sacolinha que, por sua vez, vai dentro da outra grande sacola com estampa de gato, e devolvo-as para Ceci.

 

Já estamos na porta quando ela me agradece de novo, visto que o apartamento é tão grande quanto um banheiro. Logo que saímos, percebemos a tal da Lari caminhando na nossa direção com mais uma pessoa e parando na frente do apartamento 103. Todos escutam tudo que todos conversam, então já sei que estão preocupados com o tal Tino, que por um acaso é o meu vizinho de porta, e que ela foi chamar esse outro cara para ajudar.

 

O mais engraçado é que a Dona Ceci parece não estar nem aí para o cara, mas eu podia jurar que ela adora uma fofoca e iria gostar de saber se um velho morreu ou se acidentou no edifício.

 

– Oi de novo pessoal. Parece que ninguém falou com o Tino desde ontem à noite até agora. – Lari diz preocupada. – Ah, Jef, esse aqui é o novo morador do 102 que eu tava te falando. Jef, Ricardo, Ricardo, Jef.

 

– Ô Ricardo, eu sou o Jef. Moro no 203 se precisar de algo. – Ele diz como o cara mais simpático do bairro.

 

– Prazer, Jef. Você também. Como já sabe, to aqui no 102.

 

– Oi, Jef, querido. – Dona Ceci volta a falar. – Como anda a Clarinha? Faz tempo que não a vejo por aqui, estou com saudades da minha neta. Sabe Seu Ricardo, o Jef tá namorando a minha neta. Formam um casal tão lindo. Eu fiquei de te mostrar as fotos dela, não é mesmo…

 

Conforme ela vai pegando desajeitamente seu celular para me mostrar, enfim, as fotos que ela tanto quer, vejo que a Lari continua insistindo em chamar o Tino batendo na porta.

 

– Oi, Dona Ceci, como vai? – Jef responde. – Achei que ela tinha vindo visitar a senhora, ela passou aqui e tomamos um café com o Seu Tino no sábado mesmo…

 

– Ah, sei, verdade, an… Quem sabe ela não bateu na porta e eu não ouvi, ou será que foi na hora que eu sai pra conversar com a Benta, pode ser… Que pena.

 

Mais uma situação bem engraçada. A Dona Ceci, que pelo jeito sabe da vida de todo mundo, parece ter ficado bem chateada com a situação. E o pior, eu diria até que ela está mentindo quando diz que a neta não a encontrou.

 

– Pessoal, acho melhor tentarmos abrir a porta pra ver se está tudo bem com o Tino.

 

Tentamos. Trancada.

 

– Eu e meu novo camarada aqui vamos dar uma forçada na porta, vem cá Rick.

 

Ah, claro. Com o tamanho dele tudo bem, mas acho que eu não vou ser de muita ajuda. Quem falou que eu queria ajudar, aliás? E quem deu permissão pra ele me chamar de Rick? Ok, ok. Nova personalidade. Vou trabalhar minha flexibilidade e gentileza. Fácil. Tranquilo. No primeiro dia, vamos só arrombar a porta do meu vizinho, que quem sabe, não vai ser achado morto no apartamento. Ok. To pronto para ser um ótimo vizinho.

 

Na hora em que começamos a contar até três para arrombar a porta, ouvimos vários palavrões de baixo calão vindo de dentro do apartamento. Em um segundo a porta se abre. Aí está o Tino, então. Parece ser gente fina.

 

– Mas que susto, Seu Tino! Por que não atendia a porta? – Pergunta Lari.

 

– Ã? Oi? Não to te ouvindo direito, Lari. Sumiu meu aparelho auditivo e eu to que nem um louco procurando…

 

Quando ele vê a Dona Ceci, que parece estar se escondendo atrás de mim, eu não acredito na cena que se segue.

 

– SUA VELHA! FOI VOCÊ QUE PEGOU MEU APARELHO! Olha só o que você fez, sua… sua…

 

– Fica quieto seu velho. Acha que eu dou a mínima pra isso, você que está ficando gagá e nem lembra aonde colocou…

 

– Bom pessoal, – Lari interrompe bem na melhor parte. – A boa notícia é que está tudo bem com o Tino. Eu vou indo, se precisarem de mim sabem onde me encontrar.

 

– Eu também estou indo pessoal, até mais. – Diz Jef.

 

Ficamos só eu, Seu Tino e Dona Ceci. Os dois ainda estão se encarando quando ela me puxa pelo braço.

 

– Vem, Seu Ricardo. Me acompanha até a porta do meu apartamento.

 

Não consigo me despedir do Seu Tino, ou sequer me apresentar, porque saímos de lá com tanta pressa que fico até na dúvida se a Ceci é mesmo velha.

 

– Desculpa por isso, querido. O Tino é um velho gagá, sabe. Diferente de mim e da Benta, que temos a alma jovem. Ele é meu ex-marido, ingrato. Nunca superou o fim do casamento, sabe?

 

Ela abre a porta do seu apartamento, e sem querer, eu vejo em cima da bancada que fica do lado da porta, um aparelho auditivo. Entendo. Quem sabe quem não superou o que, né.

 

– Agora tá na hora do meu descanso, querido. Muito obrigada pela ajuda essa tarde. Agora que somos vizinhos de porta, vamos estar sempre pertinho. Ah, é mesmo, amanhã vou fazer um ensopado que você vai adorar.

 

Quando ela fecha a porta, vejo que é a moradora do 101. Vim parar no meio, literalmente, de uma furada.

 

Em vez de seguir à direita, em direção ao meu 102, decido virar a esquerda em direção à portaria.

 

Não sei se vou voltar. Ou se estou preparado para ser um bom vizinho.