Me encontro em frente a antiga casa da nossa família. Se tivesse que descrevê-la hoje eu não conseguiria, não há muito o que falar sobre o estado atual dela. Eu costumava pensar que um dia daria uma casa cheia de flores pra minha mãe. Daquelas com ramos na parte da entrada e nas janelas. Elas iriam ser todas coloridas, de vários tipos e perfumes. Ouvi dizer que quem cultiva flores é mais feliz, e eu desejo nada menos que isso a ela. Pensava que um dia faria algo importante da minha vida, saberia o meu lugar no mundo. Se desse sorte, até ganharia dinheiro. Cheguei até a querer entender porque ao longo do tempo o preço da gasolina subiu tanto, e a vida sofreu uma queda tão drástica na bolsa. Mas a antiga casa da família era um lugar à parte do mundo a nossa volta. As paredes preenchidas com cores quentes, o chão de madeira e um cheiro forte de vinho no ar. Nada parecia mais aconchegante e desconfortável. Se eu voltasse uns anos atrás, conseguiria ver pela janela uma mesa de seis lugares, um sofá de veludo, uma televisão ligada e uma caixa de brinquedos. Nas cadeiras, a começar pela do lado da parede e de costas para a porta, havia uma mulher com os seus sessenta e poucos anos, e talvez, mais jovem que o resto da mesa. Ao seu lado, uma risada alta ecoa, vinda de cabelos pretos enrolados com um quê de rebeldia. Na ponta da mesa, duas cadeiras lado a lado acomodam uma menina adolescente, ansiosa para se tornar enfermeira um dia, e um menino alto e magro, preenchido pela vontade de representar o espírito humano. Eu já fui muito parecido com ele. Na cadeira em frente à da mulher de cabelos pretos, a última ocupada da mesa, meu irmão está sentado com seu fone de ouvido provavelmente escrevendo uma história no notebook que está sob a mesa. Havia ainda outras duas pessoas neste espaço. No sofá, um homem grande, mostrando seus cabelos já um pouco grisalhos, e no chão, ao lado da caixa de brinquedos, está você. Não há realmente uma palavra para descrevê-lo.
Nessa idade você já tinha surpreendido muito todos a sua volta, e não apenas pelos diagnósticos céticos ultrapassados e pela brutal força da gravidade que insistia em pressionar seu corpo físico pra baixo, mas pelas incríveis possibilidades de que sua mente é feita. É quase palpável a visão do seu cabelinho enrolado, seus olhos claros e seu corpo magricela. Isso sem contar a tagarelice constante e um sorriso de orelha a orelha. Infelizmente, o mundo ficou excessivamente cruel de uns tempos pra cá não é mesmo? Mas deixo para você, que talvez tenha vencido as sequelas e a dureza que eu não consegui, a imagem de uma casa com cores quentes.
Não sei exatamente quando ou como aconteceu, mas o céu de repente foi encoberto por uma nuvem de aflição. Bombas começaram a explodir, mas não dava pra dizer se elas vinham do céu ou de dentro de nós. Naquela época, parecia que tínhamos todos uma contagem regressiva que ninguém parecia saber como desarmar. Alguns foram pegos pela peste logo em seguida, outros enlouqueceram gradativamente e sumiram. Parecia uma devastação nuclear. Lembro de ter começado a enxergar tudo na mesma paleta decores terrosa e sem vida, e me sentia como se estivesse em um daqueles filmes de faroeste. Poucos de nós se mantiveram sãos. Eu não me descreveria como um, e nem sei exatamente como sobrevivi durante aqueles 1460 dias. Mas apesar do caos absoluto vindo de todos os lados, eu ainda pensava na casa de flores.
Como não percebemos a catástrofe se formando a nossa frente? Como não ouvimos o silêncio das engrenagens que mantinham a vida funcionando, como não vimos o cinza preencher os vácuos e como não sentimos a mudança repentina dos ventos. Eu não entendo como parecemos não notar ou ignorar o sabor amargo na boca. Foi como se o mundo virasse um grande singular e todos os tempos verbais tivessem se misturado em um. Eu me sentia expulso da minha própria terra, e o pior era a certeza de que a culpa era toda nossa, e a culpa foi um fardo que poucos se responsabilizaram em tomar. Você provavelmente não vai se lembrar de nada disso, e quem sabe se fosse um pouco mais maduro, teria reconhecido essa avalanche se aproximando de nós. De qualquer forma, registro por meio deste o meu parecer sobre o que era o mundo naquele momento.
Voltar ao normal nunca pareceu uma possibilidade. As perdas foram muito significativas, e em todas as línguas era possível ouvir uma lamentação interminável, que importunava e que a nada levava, como um cântico do avesso. Depois de um ano, e de mais de dois milhões de finais que acabaram no começo, a esperada luz no fim do túnel começava a se desmanchar na nossa frente. O desespero foi tanto que eu podia ouvir o grito interno ao meu redor ressoar com minhas próprias células. Parecia que estávamos presos no conto “Ondas Noturnas” de Stephen King, e fôssemos nos ver no futuro iguais àqueles jovens que sobraram na superfície insossa do planeta Terra. O destino foi levando um por um de nós, até sobrarem três daqueles que um dia foram sete.
Todo aquele cenário acabou se transformando em uma sombra que se escondia nos becos da cidade. Vez ou outra ela aparecia e tomava conta de uma forma avassaladora, como um susto. Outras, se alojava devagar em algum espaço sobrando no seu peito, e como quem já sabe, acabava consumindo todo o resto. Eu a via vagando por aí, nas ruas e nas casas, e rezava para que essa ausência de luz não encontrasse seu caminho até nós. Rezar, nesse momento, mesmo não acreditando em tal ato, acabou sendo o único salto de fé que até o mais incrédulo dos seres, que um dia fui, estava permitido a dar. Eu passei a entender todo aquele burburinho sobre “acreditar” tarde demais, e toda energia que eu consegui juntar relacionada a isso eu transferi a você. Talvez o último resquício de força no meu corpo tenha se esvaído aí, mas não se culpe, esse foi o motivo que eu encontrei pra seguir em frente até quando pude.
Depois de muito tentar escapar, acabei sucumbindo àquela sombra. É difícil te dizer quem encontrou quem, na realidade. Não quis de primeira, juro. Gostaria de ter conseguido refazer meu mundo em seis dias como Deus fez o nosso e Brás Cubas refez o dele, mas a contagem acabou andando de trás pra frente. O peso dos que partiram foi demais pra mim, e a imagem da casa aos poucos foi substituída por aquela em frente aos meus olhos. Terra e nada. Não me considero fraco, eu só estava… cansado demais, drenado. E daqueles três, eventualmente sobraram dois.
De qualquer forma, queria que você soubesse que eu era um daqueles caras legais sabe? Não fumava, não bebia, estudava por prazer, fazia atividades físicas regularmente, comecei a trabalhar logo que me formei. Não vou dizer que eu estava perto de algo como a perfeição, e também que era algo além de ordinário, mas cara, eu valia a pena. E eu podia mais. Eu experimentava, comemorava, dançava, era um artista nato. Eu gostava de nadar, de escrever e de rebuscar as palavras. Eu criava. Eu era parte de uma família, eu cuidava e zelava. Me divertia. Sempre fui um cara muito família. Toda sexta-feira à noite era palco de muitas gargalhadas, algumas discussões – tenho que dizer a verdade – e muito amor. E eu não to sendo brega aqui não tá? Eu sempre curti esse lance de amor. Eu queria ter experimentado mais dele. Claro que me apaixonei muito, mas queria ter tido a chance de sentir aquele tipo de amor, o que prova pra você que a magia, afinal, é real. Eu vivi outros tipos de amores, apesar da minha pouca idade. Eu amei todos os meus laços, amei minha família, meus amigos, amei o teatro, amei a vida e a representação dela.
Tenho certeza que muitos que acabaram como eu também valiam a pena. Talvez até mais. Consigo ver claramente neste momento, algo que nunca fui capaz de reconhecer em mim, e acabou sendo um pouco tarde, mas eu gostei de revisitar, mesmo que por alguns breves minutos, aquele menino com quem eu me identificava sentado na mesa de seis lugares. Depois de ficarmos trancados por meses a fio, comecei a me sentir muito frágil, como se o vendaval do lado de fora fosse me levar junto a qualquer momento. Sentia que não estava no lugar certo, na hora certa, como se não pertencesse mais. Ver a vida passar pela janela pode não ser a descrição mais exata para o momento, até porque eu não via a vida, mas a falta dela do lado de fora. Parecia que o futuro estava sendo tomado pela mutação do outro lado da porta, e que não adiantava mais se arrepender de nada que fizemos, ou que não fizemos.
Acontece que esse foi um dos sentimentos que tomou conta do que ainda não havia sido tomado no meu corpo. A sensação que foi crescendo de impotência me dominou. Eu lutei contra ela, de verdade, mas a incerteza sobre a possibilidade de um dia vir a sentir, ouvir, tocar e ver tudo que eu não consegui, e tudo que eu gostaria de repetir, foi excessiva. E o medo, medo de sair de casa, medo da contaminação, medo das bombas que eu ainda não tinha conseguido desvendar da onde vinham, medo do gás. Medo da perda. Medo daquilo tudo estar acontecendo apenas na minha cabeça. Medo do desperdício de vida. Medo de nunca mais ver algo parecido com as paredes de cores quentes. Eu não fui feito pra viver com medo.
Gostaria de aproveitar e pedir desculpas por não ter me despedido, e avisá-los que fui para o único lugar que poderia passar os últimos segundos em paz. É provável que a mãe já tenha percebido por agora, e talvez até pense em levá-lo junto para procurar o que restou na beira da praia. Mas vendo daqui de onde estou, sei que não me encontrarão. Não sei quanto tempo vou ficar por aqui, e nem se algum dia conseguirei levar essas palavras até você, mas escrevê-las acabou sendo parte de meu próprio purgatório. E eu imagino que, se você estivesse lendo essa carta agora, se perguntaria o que é o purgatório, e a mãe iria querer saber se eu encontrei algum de nós por aqui, ou até mesmo um figurão do passado. Sei que também se perguntariam o que é aqui, isso depois de querer saber se estou bem, mas já adianto, não faço a menor ideia de onde estou e não sinto nada.
Tenho que admitir uma coisa, já que não há nenhum problema em ser extremamente sincero e julgar com frios olhos agora. Não sei porque escrevo. Não sei se essas palavras um dia encontrarão um caminho pra chegar até vocês, não sei nem se esse papel e essa caneta são reais e se não vão simplesmente sumir depois que eu acabar. Mas não deveria me importar com o que é real e o que não é mais, né? Acho, na verdade, que escrevo para registrar a minha vida em algum lugar, pra ter algum tipo de importância. Na verdade, não sei nem se vocês ainda vão querer ouvir sobre mim, e não sei se é egoísta da minha parte querer isso – fazer parte de alguma forma, não querer ser esquecido – e eu sei, corri um grande risco em relação a isso ao escolher abandonar tudo. Mas isso também me dava medo, e você já sabe, eu não suporto o medo. Fui encorajado como artista a escrever sobre o meu tempo. Fiz isso com a esperança de que, no futuro, as paredes brancas que estão a minha volta regressem à mistura do vermelho e do amarelo. O fato de não sentir mais aquela sensação só fez com que todo dia eu a quisesse de novo. Exatamente do mesmo jeito, que fosse tão real quanto aquele sonho, tão incrível quanto aquela história. Nós cinco fomos apenas uma história, e eu constantemente me pego pensando e questionando se essa história será uma leitura para você, tão boa quanto foi para mim.